Será Cristo o único Salvador? (MC)

(Deverá “clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)

 

 

 

     1. Durante o ano de 2009, várias Igrejas, Seminários e Faculdades de Teologia comemoraram os 500 anos do nascimento do grande reformador João Calvino. Em Portugal, o evento foi recordado em primeira-mão neste site “Estudos Bíblicos Sem Fronteiras Teológicas”, com artigo meu, e muito mais tarde com um colóquio organizado em Lisboa pela Igreja Evangélica Presbiteriana de Portugal. Nesse colóquio tive o prazer de ser um dos oradores.

Quando terminei a minha alocução nesse colóquio, seguiu-se um debate, que acabou por ser muito vivo porque um senhor da assistência tomou a palavra para expressar a sua “alegria pelo movimento tolerante moderno, em que, finalmente, se percebe que todos os seres humanos são filhos de Deus e todas as religiões, desde que vividas com sinceridade, são boas e salvam”. Não concordei com a conclusão daquele senhor que considerei ter interpretado mal o que eu dissera na análise do pensamento de Calvino.

    

      2. Na verdade, Calvino é muito fiel ao ensino do Novo Testamento e neste a declaração central é esta, colocada nos lábios de Jesus: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida e ninguém vem ao Pai senão por mim João 14:6. Concorde-se ou não com este “exclusivismo” de Jesus Cristo, o que não podemos negar é o ensino fundamental do Novo Testamento. Se nos colocarmos na perspectiva do Novo Testamento não podemos dizer que “todas as religiões são boas, desde que vividas com sinceridade”. Mas antes de tentar analisar essa afirmação central do NT, permitam-me uma breve reflexão sobre a afirmação de que “todos os homens são filhos de Deus”. Do ponto de vista da Bíblia, o que se pode dizer é que nenhum homem nem nenhuma mulher é, por nascimento, filho ou filha de Deus. No NT só Jesus é Filho de Deus, por isso chamado o Unigénito do Pai João 1:14. O ser humano não é, por nascimento, por natureza, “filho de Deus”. Tornamo-nos “filhos de Deus” por adopção: adopção da parte humana quando aceita Deus como Pai; e adopção da parte de Deus que nos aceita. Há um texto bíblico claríssimo sobre esta questão: Vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou Seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de receberem a adopção de filhos Gálatas 4:4/5.

 

  3. O que escrevemos até aqui já nos dá alguma luz para o ponto principal, isto é, a questão de saber se é só em Cristo que se encontra a salvação. A primeira observação que deve ser feita é que o NT não nos apresenta Jesus como um profeta, ou mesmo o maior dos profetas, mas confessa-o como o “Filho Unigénito de Deus”. No pensamento bíblico não há um Deus-Principal que tem um filho, Deus-Secundário, como encontramos nas mitologias pagãs – mas há um só e único Deus, o “Eu-Sou” que incarnou em Jesus de Nazaré e é o Emanuel, Deus no meio de nós Mateus 1:23.  A Igreja Cristã não corta com a declaração maior da Fé Judaica: Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor! Deuteronómio 6:4. O escândalo que pôs fora de si os chefes religiosos que acusaram Cristo foi ele ter dito: …Quem me vê a mim, vê o Pai!... João 14:9. Dizer isto é manifestação clara de loucura – e nesse caso devemos rejeitar toda a religião cristã – ou é a verdade que não pode senão ser aceite. Foi esta e não outra qualquer afirmação de Jesus que o levou à cruz.

 

  4. É neste contexto teológico que se coloca palavra de Cristo: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida; ninguém vem ao Pai senão por mim João 14:6. Note-se que não diz que é um dos Caminhos possíveis, nem uma das expressões da Verdade, e uma das manifestações da Vida – mas é a totalidade, o absoluto, e o absoluto só se pode imaginar em Deus.

 

Não há problema algum com a tradução do grego do Novo Testamento, mas permitam-me que rebusque um pouco nessa área. Como tenho de ser sucinto e o tema pode desinteressar, se o leitor preferir passe já para o parágrafo número 5.

Transliterando o texto grego, fica assim a frase que mais nos interessa: oudeis erchetai pròs ton patera ei me di’emou . Ou seja: ninguém vem ao Pai senão por mim. O mais interessante é esclarecer que di’emou é formado por “dia” e “emou”. “Dia” é uma preposição que temos na palavra portuguesa “diálogo”. O diálogo é a comunicação através de palavras. Emou é o pronome que se traduz por “de mim”. Não estamos numa aula de grego (nem sou mestre nesta língua!), mas digo que as palavras gregas são declináveis e a preposição “dia” muda de significado conforme a palavra que acompanha esteja no genitivo ou no acusativo. Na frase que analisamos “dia” precede um genitivo e, portanto, significa “através”, “por meio de”. Se precedesse um acusativo significava “por causa de”. Há no Novo Testamento grego muitos lugares em que “dia” aparece junto de genitivos. Dou apenas três exemplos que podem ver nas vossas Bíblias em português. 1) João 1:7 diz que João Baptista veio para que pela sua pregação (dia) todos cressem; 2) Mateus 12:1 diz que Jesus caminhava através (dia) dos campos; 3) Em Romanos 1:8 Paulo diz que Ihaweh é o seu Deus por (dia) Jesus Cristo; 4) Finalmente, Efésios 2:8 diz que pela graça somos salvos, por meio (dia) da fé. Quer dizer que a graça actua através da fé.

Quero sair rapidamente deste parágrafo pretensioso, mas sempre direi que o que a análise permite perceber sem sombra de dúvida é que Jesus se coloca aqui como o meio incontornável de alguém chegar ao Pai.

 

5. A situação que analisamos é a mesma da passagem em que Jesus se apresenta como a Porta pela qual o crente entra na Vida Abundante João 10:1/10. Ninguém vem ao Pai senão por meio de Jesus. Ele é o único meio de chegarmos a Deus. Encontrar Cristo é encontrar Deus. Por isso a Igreja primitiva pode concluir, enfaticamente que não há outro nome dado entre os homens (além do nome de Jesus Cristo), pelo qual devemos ser salvos” Actos 4:12. Citei este texto no colóquio sobre João Calvino, que o refere nas Institutas, para acentuar a fidelidade do Reformador da Suíça ao ensino do Novo Testamento.

Quando São Paulo reflecte, no primeiro capítulo da Carta aos Romanos, nas consequências do pecado na vida da humanidade, ele conclui que, na condição em que a humanidade se encontra, não é possível ter, naturalmente, um conhecimento correcto da natureza de Deus nem da Sua vontade. As religiões dos homens nascem neste contexto e, por isso, Paulo aponta nessas religiões a prática de idolatria, a substituição da adoração de Deus pela adoração de animais, e a depravação dos costumes. Mas há um raciocínio que se impõe: Paulo fala de religiões que ele conhece e onde há práticas do tipo acima referido que os cristãos não podem aprovar – mas é evidente que nem todas as religiões têm tais práticas. O Judaísmo, o Budismo, o Taoísmo, o Hinduísmo, o Islamismo e outras religiões de expressão pacífica, onde não se adorem animais, não haja idolatria, nem depravação de costumes, merecem o maior respeito dos cristãos, que com elas podem e devem cooperar para o bem da Comunidade humana. Não se trata de comungar das crenças das outras religiões, porque isso seria intelectualmente desonesto, mas de, mantendo-se fiel ao ensino cristão, respeitar as ideias religiosas diferentes.

 

  6. Na verdade, a pergunta que dá título a este artigo tem levado a muitas confrontações estéreis. Os cristãos, na fidelidade à revelação bíblica, dirão, sem dúvida, que Cristo é o Salvador – mas não lhes cabe especular sobre isso nem podem fazer dessa afirmação um motivo para discussão com os que não crêem em Cristo, sejam partidários de outras religiões ou sejam simplesmente ateus. Neste contexto, podemos lembrar a passagem do Evangelho em que Jesus ressurrecto dá instruções a Pedro sobre as tarefas que o esperam e este vê passar João, o discípulo amado. Pedro pergunta então a Cristo: “E o que farás com aquele?”. Jesus reage assim: “Que te importa a ti? Segue-me tu!” João 21:22. Devemos estar sempre preparados para responder, com mansidão e temor, a qualquer que nos pedir a razão da nossa fé Pedro 3:15, mas note-se bem: com mansidão e temor, não com orgulho e agressividade.

Não podemos dizer, como o senhor no debate que referi no primeiro parágrafo, que “todas as religiões são boas quando praticadas com sinceridade”. Na verdade, na sua confusão, o homem tem inventado religiões que levam à inimizade e à guerra. Muitas vezes, mantendo o nome de Cristianismo, aparecem movimentos que só trazem mal ao mundo – mas o nosso modelo é Jesus Cristo que deu a sua vida em oferta a Deus por amor dos homens Efésios 5:2.

 

Manuel Pedro Cardoso

Figueira da Foz - Portugal

Janeiro de 2010   

 

Estudos bíblicos sem fronteiras teológicas