IGREJA = Túmulo de Deus? (MC)
(Alguns aspectos do pensamento quaker)
(Deverá “clicar” nas referências
bíblicas, para ter acesso aos textos)
A vida humana pode ser uma aventura exultante
se tivermos a preocupação de viver o dom maior com que Deu nos criou, a
liberdade. Quando o livro de Génesis nos diz que o homem foi criado à imagem de
Deus, percebemos que não é de uma “imagem” material, física, que fala, mas
principalmente da liberdade do Ser divino. Devemos, por isso, abandonar a
tendência de orientar as nossas vidas apenas no cumprimento de valores
exteriores que recebemos dos nossos predecessores, das instituições, da
sociedade. Não se deseja a rejeição de todos os valores recebidos ou propostos
- mas defende-se que não nos subjuguemos docilmente aos valores recebidos e
que, em cada momento, diante de cada situação, façamos um esforço de inovação,
de mudança, de integração pessoal na vida. Cada pessoa que veio a este mundo é
uma oportunidade irrepetível da vida se expressar de forma única. Não há
ninguém em toda a terra, nunca houve nem haverá que seja igual a outra pessoa.
Mesmo os gémeos, que podem ser quase inconfundíveis fisicamente, têm diferenças
a esse nível e são, interiormente, pessoas distintas. Não podemos, portanto,
recear a mudança, e devemos estar prontos a analisar a nossa experiência,
deixando para trás aquilo que a nossa consciência não aprova como verdade, e
prontos a aprofundar outros valores. Há o maior benefício em estudarmos as
várias correntes religiosas, filosóficas e políticas, sem receio de pôr em
questão o que temos pensado. Nas páginas que se seguem procurarei expor o
resultado de uma pesquisa simples sobre o movimento religioso conhecido por
Quakerismo.
1. Igreja, túmulo de Deus?
Nestes primeiros anos do século XXI,
observa-se alguma debilidade no Cristianismo em Portugal. O Catolicismo romano,
muito identificado com o Catolicismo popular, centrado em Fátima,
decepciona-nos; e as Igrejas protestantes manifestam uma desorientação
assustadora que augura um futuro breve em que o evangelismo de tipo populista
dominará essa área. Há ainda católicos sinceramente apostados em seguir Cristo
e ramos protestantes e evangélicos sérios, ou antes pessoas sérias dentro de
alguns ramos, mas a paisagem em geral não é animadora, falando-se em termos
humanos, claro, porque Deus continua firme no Seu lugar. Um livro da década de
1970, creio que de um padre francês, tinha este título
provocador: “Igreja: túmulo de Deus?”. Não respondia pela afirmativa, mas
lembro-me que denunciava duramente aspectos da instituição que a fazem ser em
muito responsável do “morte De Deus”, tema então muito em voga. O problema
dessa década continua por ser solucionado. Para um número muito grande de
pessoas Deus é uma simples palavra e sem sentido. Deus é identificado com as
Igrejas e estas com realidades pouco apetecíveis.
Há motivos para não termos total
confiança nas instituições eclesiásticas. Isso leva-nos a pensar no Quakerismo,
que é o movimento cristão porventura mais avesso à institucionalização. Os
autores do livro “O Protestantismo de A a Z”, incluem
o Quakerismo nessa corrente mas sem rigor e dizem: “Os quakers recusam qualquer sacramento, qualquer
liturgia e toda a instituição eclesiástica; trata-se de ficar disponível à
acção divina e daí a importância que concedem à espera de Deus em silêncio.”
(Jean Bauberot e outros, El Protestantismo de A a Z, p.57). Pode ser útil estudar este movimento, e a
aprender com ele. Não para nos tornarmos formalmente quakers,
mas para, eventualmente, recebermos a ajuda espiritual que este pensamento
promete. Um Cristianismo simples e intenso, que pode transformar o mundo, como o fermento influencia a massa.
2. Para além das igrejas.
É quase um pleonasmo dizer que ser
cristão é obedecer aos ensinos de Jesus Cristo, o que implica também obedecer a
Deus, pois Jesus Cristo é Deus e revela a vontade de Deus Pai. A dificuldade
está em saber quais são os verdadeiros ensinos de Jesus Cristo.
A partir do século IV da era cristã, com
o desenvolvimento do Papado, passou a acreditar-se no Ocidente que os
verdadeiros ensinos de Jesus Cristo são transmitidos pelas Escrituras (Antigo e
Novo Testamento), segundo a interpretação oficial da Igreja de Roma, que discernia a Palavra de Deus nessas Escrituras, no
ensino dos papas e na Sagrada Tradição. O simples crente era instruído pela
hierarquia sacerdotal sobre o que devia crer e como devia viver a fé. Com a
Reforma protestante do século XVI pretendeu-se mudar esta situação, considerada
de menoridade para o povo cristão, dependente da casta sacerdotal para conhecer
a vontade de Deus, e defendeu-se então que as Escrituras são a única e suficiente regra de fé e prática. Ou seja,
é apenas nas Escrituras que o cristão encontra a revelação do ensino e da
vontade de Deus. Ao mesmo tempo a Reforma anunciava também o “direito ao livre
exame das Escrituras”. A interpretação das Escrituras deixava de ser uma
prerrogativa da hierarquia, que falaria por uma voz oficial, mas, defende a
Reforma, existe a oportunidade de cada
crente, sem distinção, proceder à sua interpretação. O Ocidente ficou
dividido entre católico-romanos, obedientes ao papa, que o reconheciam como
aquele que tinha autoridade suprema para indicar a recta doutrina, e protestantes,
que proclamavam encontrar a doutrina de Cristo apenas nas Escrituras.
Um sincero cristão inglês do século
XVII, George Fox, percebeu então que os
católicos queriam impor a voz infalível do papa e os protestantes queriam impor
um papa infalível de papel, que era a Bíblia - e o resultado era a luta
fratricida que devastava a Europa, as guerras religiosas, que o escritor José
Saramago tão bem ilustrou no drama In
Nomine Dei. George Fox (1624-1691) era um simples sapateiro quando, aos 23
anos, teve a percepção de que Deus não é apenas a realidade transcendente que
está sobre todas as coisas, mas é também a realidade que vive no coração do
homem, a Voz e a Luz Interior que ilumina todo o homem que vem ao mundo João 1:9. Teve dias
de grande agonia diante do espectáculo do ódio entre cristãos e finalmente
escreveu no seu Diário: “... e quando toda a esperança
fosse no que fosse desapareceu, de modo que eu já não tinha nenhum socorro a
esperar do exterior e já não sabia que fazer, então, oh!... Então, ouvi uma voz
que me dizia: “Há um, Jesus Cristo, que pode responder às tuas necessidades”. E
quando ouvi estas palavras o meu coração explodiu de alegria. Então o Senhor me
fez ver porque ninguém sobre a terra poderia responder às minhas necessidades.
Era para que eu pudesse prestar-lhe toda a glória; porque todos estão
envolvidos no pecado, e fechados na sua incredulidade, como eu estivera, a fim
de que Jesus pudesse ter a proeminência, ele que esclarece, que dá a graça, a
fé e o poder.” Compreendeu nessa altura que o ensino católico-romano seria
incompleto se não alargasse a iluminação do Espírito Santo a todos os crentes,
e não reservado ao papa e aos membros da hierarquia, e o ensino do Protestantismo
teria de ser completado com a verdade de que Deus continua a revelar-se
directamente, sem intermediários, a cada homem ou mulher que O busca. Nenhum
socorro exterior, nenhum homem, nenhum livro (nem mesmo a Bíblia!) pode matar a
sede de Deus, se o próprio Deus não Se comunicar directamente à alma sedenta.
Encontrou Fox outros homens e mulheres
que também estavam descontentes com o Catolicismo e com o Protestantismo, e que
queriam servir a Deus, e passaram a orar juntos. A grande preocupação do grupo
era o despojamento de aspectos exteriores da religião e a concentração na
oração. O número dos que apoiaram esta perspectiva da fé aumentou rapidamente,
o que deu origem a perseguições. Já em 1650 Fox é apresentado diante de um
juiz. Em sua defesa Fox expressou o desejo de que a justiça tremesse diante da
Palavra de Deus. Do verbo tremer (to tremble) veio analogia com o que acontece no tremor de
terra - e o juiz chamou-lhes, depreciativamente, “quakers”
(do verbo to quake,
abanar). O movimento ficou conhecido por essa alcunha, mas os “quakers” adoptaram como designação a expressão “Sociedade
dos Amigos”, ou simplesmente “Amigos”. Nos dias do seu nascimento, o Quakerismo
foi visto pelas Igrejas estabelecidas como um movimento sectário, mas o seu
comportamento pacífico, a sua tolerância e a moderação das suas posições
teológicas fizeram que viesse a ser visto até hoje como uma forma respeitável
de Cristianismo. Os livros que estudam heresias e “desvios cristãos” não
incluem o “Quakerismo” nas suas listas.
Na verdade, o Quakerismo é a forma
alternativa ao Cristianismo veiculado pela Igreja Ortodoxa, Igreja
Católico-Romana e Igrejas Protestantes. Um Cristianismo para além das Igrejas.
Aqueles que põem em dúvida que Jesus quisesse fundar uma Igreja-organização — e
há muitos elementos no Novo Testamento para aceitar esta tese — podem ver no
movimento quaker a forma mais parecida com o que
estaria no projecto de Jesus. O desejo expresso pelos primeiros quakers, de quererem viver o Cristianismo conforme os
primeiros cristãos, não podendo ser totalmente realizado (a história não se
repete), chegou, pelo menos, a ter no Quakerismo uma forma muito próxima. Nele,
a instituição é mínima e as doutrinas são também mínimas. A grande preocupação
dos quakers ainda hoje é abolirem todos os sinais
exteriores de religião. Ainda que falem de religião e considerem que praticam
religião, abolem a distinção marcadamente religiosa entre sagrado e profano,
sendo que todos os lugares são considerados sagrados. Não festejam dias sagrados
em especial, mas consideram todos os dias sagrados. Se nos seus lares festejam
o Natal e a Páscoa fazem-no mais para acompanhar o ritmo social, mas achando
que cada Domingo é dia de Páscoa e de Natal. O Quakerismo é um movimento de
intensa comunhão espiritual, de grande fraternidade e de acção a favor do ser
humano.
3. A Sociedade dos Amigos
Costuma falar-se de 1668 como o ano do
nascimento da Sociedade de Amigos, quando Fox apresentou uma “Regra para a
Orientação de Ajuntamentos”. Ajuntamentos ou assembleias (meetings) é a
designação que entre os quakers se dá às suas
comunidades. Era esse também o termo usado, em grego, quando esta era a língua
comum no Ocidente, e de onde veio a nossa palavra “igreja”. A escolha do termo
“meeting”, ou assembleia, revela, pois, a orientação desde o princípio de
preferir termos seculares aos usados até então pela religião.
Os amigos
não têm como maior preocupação um corpo de doutrinas. Não há uma Confissão,
Credo ou Declaração de Fé que sirva para medir a ortodoxia dos membros da
comunidade. Como diz um dos seus textos: A
Sociedade dos amigos tolera as
diferenças de opinião entre os membros. Não requer a adesão a uma definição
precisa da sua fé. Não adopta uma ordem estabelecida nos seus cultos públicos.
Não tem pastores nem padres. Se esta descrição é negativa, o que devemos
sublinhar é, pelo contrário, muito positivo: o Quakerismo é a religião da
simplicidade. Ela deixa aos seus membros toda a liberdade na prática dos seus
princípios.
Ao longo da história da Sociedade de Amigos
houve momentos de tensão que se revelaram fecundos no fim de contas, porque
deles resultaram um desenvolvimento regular da unidade, tanto na fé quanto da
prática. William Penn, o famoso aristocrata inglês
que, convertido ao Quakerismo, fundou a Pensilvânia,
que foi, na verdade, um país, anterior ao nascimento dos Estados Unidos da
América, escreveu em 1692: Não é a
opinião, nem a especulação, nem uma concepção da verdade, tanto como não é o
assentimento ou a adesão a artigos ou proposições [de fé], por mais bem expressas que elas sejam, que
fazem de um homem um verdadeiro crente ou um verdadeiro cristão. É a
conformidade do seu espírito e dos seus actos à vontade de Deus, numa bendita
mistura do princípio divino da Luz e da Vida na alma, que mostra que um homem é
verdadeiro filho de Deus. Apesar de, por coincidência, nestas duas citações
aparecer a palavra “homem” por “pessoa”, deve dizer-se que desde os seus
primórdios os quakers não fazem a discriminação
sexista corrente nas Igrejas, tendo sido mesmo uma das razões da crítica que
lhe era feita o facto de mulheres poderem ensinar nas suas reuniões.
Não se diz que as mulheres “dirigiam” ou
“chefiavam” dentro da Sociedade, porque nesta Sociedade ninguém é chamado
dirigente ou chefe, não havendo nenhuma separação, nenhuma hierarquia, entre os
seus membros. Nelas é levado ao pé da letra o princípio do sacerdócio universal
dos crentes, apregoado pela Reforma mas nem por isso muito aplicado no
Protestantismo por séculos. O governo entre os quakers
é sempre democrático. Com a particularidade de tradicionalmente as decisões
serem tomadas por consenso e não por maioria. Daí que, enquanto houver irmãos
com voto negativo, os assuntos têm de ser discutidos e as propostas melhoradas.
Isso implica maior demora nas decisões, mas evita os erros e injustiças que se
fazem com a “ditadura das maiorias”.
Na história dos seus trezentos anos, há
muitos nomes masculinos e femininos que se destacaram - mas os destaques entre
os quakers fazem-se sobretudo na filantropia, no trabalho
pela paz no mundo, na reflexão teológica e na oração, e não como chefias
eclesiásticas.
O desinteresse quaker
pelo rigor doutrinário é um sinal da sua natureza de movimento místico, se
entendermos por misticismo a busca prioritária da união da alma com Deus, numa
vivência interior. O que o torna realmente singular é ser um caminho místico
acessível à pessoa comum, mesmo sem grande formação literária. O que o faz nos
nossos dias ser uma corrente de, quase se poderia dizer, uma elite culta
(haverá apenas uns 200.000 quakers no mundo) não é
uma exigência intelectual para compreender a mensagem, mas o facto de ser uma
forma religiosa destituída ao máximo de exterioridades (não constrói edifícios
com o feitio tradicional de templos, não há uma liturgia pomposa nas suas
reuniões, não têm pastores, nem ninguém usa vestes litúrgicas), e estão,
portanto, na contra-corrente do nosso tempo de exterioridades. No tempo em que
as Igrejas apostam no espectáculo (as seitas como a Igreja Universal do Reino
de Deus são a caricatura do nosso tempo). O homem do princípio do século XXI,
desta época onde reina a imagem, vive sobretudo dos olhos, do tocar das coisas
- e isso não facilita a popularidade de uma corrente religiosa, como o
Quakerismo, que propõe justamente a interioridade. Por outras palavras: uma
época, já iniciada no século XIX, de extroversão, não aceita bem uma religião
introvertida por excelência.
4.Grande acção social
Há a tendência em muitas pessoas de
pensar que o misticismo isola os seus praticantes do mundo do trabalho e da
luta - mas quem conhece a vida dos amigos
sabe que o seu misticismo, pelo contrário, os leva a um compromisso muito claro
com a acção no mundo. Um dos seus membros do século XX mais conotado com a
corrente mística, o norte-americano Thomas Kelly
(1893-1941) no seu livro póstumo A Testament of Devotion
é da opinião que “numa cultura intensamente religiosa os homens sabem que o
profundo nível de oração e adoração a Deus é a mais importante coisa no mundo”,
mas nessas páginas fica também provado que uma alma verdadeiramente empenhada
na fé, como a sua, não descansa na sua acção em favor dos outros, sem
descriminação religiosa. Kelly distinguiu-se pela sua
actividade filantrópica através dos centros quakers,
pelo mundo fora. “A possibilidade, diz Kelly, da
experiência da Presença Divina, como um facto repetidamente realizado e
presente, e o seu efeito transformador e transfigurador da vida total - esta é
a mensagem central dos amigos”. Não
se trata, pois, de um misticismo restringido às “coisas da alma”, mas a toda a
vida, incluindo a preocupação social. Na sua história são pioneiros na acção
contra a escravatura, contra as más condições de trabalho das pessoas, do
respeito pelos direitos dos índios americanos, em favor da reforma das prisões,
do acesso à educação de classes pobres, da defesa da solução pacífica das
contendas entre os povos.
Um cristão não-quaker, comentou assim a enorme actividade social dos membros da
Sociedade dos Amigos: “Penso que essa acção deve ser facilitada por eles não se
preocuparem com a construção de grandes igrejas (edifícios), nem com o sustento
pastoral, visto que não têm pastores. Em alguns países, entre os evangélicos,
apesar de haver muitos dizimistas, principalmente
entre os mais humildes. praticamente todo o dinheiro
vai para o sustento pastoral a construção de templos de que tanto se orgulham”.
É claro que a fé cristã não consiste
apenas na acção social - em boas obras - mas tem também de se manifestar nela
esse desejo de realizar o bem. É espontâneo no verdadeiro cristão o desejo de
olhar em volta de si e procurar ajudar quem precisar e quiser a sua ajuda.
Ajudará não para ser salvo, para “ganhar o céu” pelos actos de caridade que
fizer, mas fará actos de caridade se realmente se sentir salvo. Portanto, o
“céu” não se ganha, mas recebe-se — e quem está nesta vida já no céu, é feliz e
busca fazer felizes as outras pessoas. Aquele ou aquela que se sente feliz na
comunhão de Deus começa, mesmo sem ter programado para a sua vida, a fazer todo
o bem que puder.
5. A luz interior
O Quakerismo crê que a Revelação de Deus
não se fez apenas no passado, através de homens escolhidos e especialmente no
Verbo Incarnado, Jesus Cristo, mas continua a fazer-se no diálogo permanente
que a alma tem com Deus, no Espírito Santo que habita no coração do crente. A
diferença em relação ao Protestantismo tradicional é, pois, de não ver na
Bíblia a única fonte de revelação, e em relação ao Catolicismo é que a
revelação actual não está limitada a um escol (papa, concílios). Nos dias de
hoje, a distinção quaker da revelação permanente tem
já eco noutras denominações, mas o Quakerismo continua a ser mais coerente com
este princípio. Este princípio, que poderia empurrar a Sociedade dos Amigos
para a proliferação de uma multidão de doutrinas contraditórias, não tem tido
tal resultado, reinando nela, pelo contrário, a simplicidade doutrinal, apesar
da total liberdade. Para os quakers, a Bíblia é sem
dúvida o livro por excelência, e isso faz do Quakerismo uma confissão cristã
legítima. É o Livro que se deve ler devocionalmente. Mas a sua interpretação
não é literal, sendo reconhecido que a Bíblia tem uma mensagem espiritual e que
os escritores bíblicos, foram inspirados, mas não
deixaram de escrever com os condicionalismos das épocas em que viveram e das
suas pessoas. Deus é infalível, mas o homem falível não pode senão colher da
revelação o essencial de que precisa para a orientação. Agora vemos como por espelho em enigma, diz o apóstolo Paulo 1ª Coríntios 13:12,
isto é, nesta dimensão da vida não conhecemos a totalidade da Verdade de Deus.
Não se pode, no entanto, dizer que os amigos
fazem uma leitura “liberal” da Bíblia - porque os liberais teológicos dão, na
sua leitura da Escritura, um lugar proeminente à razão humana, recusando nela
tudo que a razão no tempo do leitor não aceita, e os quakers
preferem uma leitura em que a razão aceite ser iluminada pelo Espírito. Assim
como se acredita que não se pode ler poesia com olhos de cientista, também
pensam os quakers que o leitor da Bíblia deve estar
atento fundamentalmente ao carácter teológico e espiritual da mensagem bíblica,
que não é contra a razão mas vai para além da razão. E nisto tem o apoio da
própria Escritura que diz: O homem natural não compreende as coisas do Espírito de
Deus, porque lhe parecem loucura, e não pode entendê-las, porque elas se
discernem espiritualmente 1ª Coríntios 2:14.
Assim, por exemplo, um fundamentalista (aquele que aceita a Bíblia à letra),
usaria a narrativa do livro de Génesis sobre a Criação para defender que o
mundo foi criado em seis dias e tudo ficou feito de uma vez por todas
(fixismo); o liberal, aceitando o evolucionismo, desprezaria a mesma narrativa,
considerando-a uma lenda antiga; mas o quaker lê-a
como uma ilustração do pecado do ser humano, que quer dispensar a autoridade de
Deus e afirmar o que é o bem e o mal. O fundamentalista usaria o texto bíblico para
atacar a ciência; o liberal usá-lo-ia para destruir a mensagem bíblica; o quaker tiraria dela a lição espiritual eterna. O
fundamentalista, neste caso, despreza a razão; o liberal endeusa-a; o quaker respeita-a mas ultrapassa-a. Obviamente, há hoje teólogos
e simples cristãos nas diferentes Igrejas que fazem uma leitura igualmente rica
da Bíblia, mas é notável verificar que os quakers
fazem-na desde o século XVII. A este propósito é interessante observar que o
Protestantismo histórico estimulou a critica literária da Bíblia mas, como
observa Carl Jung, este estudo “revelou-se muito
pouco apto para fortalecer a fé no carácter divino das Escrituras” (Psicologia
da Religião, p. 26). Nós sublinhamos que a maneira quaker
de entender a Bíblia permite ao crente manter essa confiança nas páginas das
Escrituras. Deus fala nas Escrituras como fala dentro do homem com palavras
humanas. Quanto mais humano, mais divino.
O que o quaker
busca, fundamentalmente, é o encontro interior com Deus. Para isso, o crente
tem de se colocar num estado calmo, evitar ao máximo a agitação, afastar
pensamentos negativos, e deixar que Deus Se manifeste. Num ajuntamento quaker as pessoas podem estar em silêncio, nessa busca
calma de Deus por dez, quinze minutos, meia-hora, num contraste com a maioria
das igrejas em que parece haver medo de não preencher o tempo com palavras e
mais palavras. Um autor quaker usa como epígrafe de
um capítulo esta frase de Teresa de Ávila: “Aquieta-te em solitude (a) e
encontrarás o Senhor em ti mesmo”. (Richard J. Foster,
Celebração da Disciplina, p. 119).
Pouco se interessa pelo exterior da religião e a simplificação da vida é
aspiração importante. A maior aspiração, porém, é o encontro com Deus, ouvir em
si a Voz de Deus. Se Jesus disse que o Reino de Deus está dentro do discípulo Lucas 17:21, pela
oração o cristão entra nesse Reino, que é plena felicidade. Quem convive com um
quaker testemunha da existência nele, em geral, de um
contínuo estado de felicidade.
Aquilo que as pessoas costumam designar
por “a voz da consciência”, não é só a Voz de Deus. É ela mas misturada com
muitas outras vozes - a voz da nossa educação, da nossa tradição religiosa, da
nossa vaidade, do nosso interesse, da nossa concupiscência, do nosso orgulho,
dos nossos medos, etc. O que o crente deve desejar é separar as vozes - e dar
destaque em si à Voz de Deus. É verdade que por vezes é difícil discernir
dentro de nós qual é a Voz de Deus, mas veremos que é divina na medida em que
for objectiva, amorosa, desinteressada, humilde, sábia e dignificante. Até que
se faça unidade dentro de si e a Voz domine as vozes. Um ponto é certo: a Voz
que ouvires é a mesma que falou a Abraão, a Moisés, a Isaías, e aos outros
profetas. Portanto nunca será contrária às vozes da Bíblia. Por isso também é
importante ler a Bíblia, para saber como é a Voz, pois Deus não se contradiz,
não te diz nada diferente do que disse já - mas di-lo a ti, pessoalmente.
Quando te parecer ouvir dentro de ti uma afirmação que contradiga a Bíblia, que
te inspire algo contra o bem e a justiça, sabe que não é voz de Deus e
recusa-a. Tudo que dentro de ti te inspira pensamentos de bondade e justiça,
tudo que te leva a imitar Jesus Cristo vem de Deus.
Já reparaste que tu não és apenas uma só
pessoa? Quando amigos ou inimigos falam de ti, não notas que dizem coisas de ti
que achas erradas? “Não, eu não sou isso”. Tu próprio, uns dias vês-te de uma
maneira e noutro dia vês-te de outra maneira. Qual delas é o teu verdadeiro
“eu”? Deves trabalhar para que Deus em ti seja o porta-voz do teu verdadeiro “eu”. É Ele que sabe
quem tu és, objectivamente.
Diante de cada situação, em cada momento
em que tens de dar uma opinião, fazer um juízo, tomar uma decisão, pergunta-te:
“O que é que a minha consciência diz, o que é que ela quer que eu faça?” - e
isto, para quem está adiantado na vida espiritual é o mesmo que perguntar: “O
que é que Deus quer que eu diga, que eu faça?”. Já dissemos que Deus inspira o
ser humano mas “agora só conhecemos em parte” - por isso não penses que o que
compreendeste da Voz é infalível. Não digas a ninguém: “Faz isto porque Deus me
disse ser este o caminho, ser esta a verdade”. Diz antes: “É assim que eu
penso”. O exercício da humildade começa por ser a recusa de um estatuto
especial. De Jesus Cristo diz a Escritura que, sendo de natureza divina,
aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo Filipenses 2:6/8
6. Adoração quaker
O aspecto do Quakerismo que mais
estranheza causa nos observadores externos é a forma do seu culto colectivo,
que é celebrado numa sala sem ornamentação especial, numa casa igual às de
habitação. Já George Fox rejeitava às “casas com torre” (steeple houses), para referir os templos
católicos e protestantes. Também aí se manifesta a secularização que os quakers preferem do Cristianismo.
Devido à descoberta da Luz Interior e ao
desinteresse por exterioridades, os quakers têm um
gosto acentuado pelo silêncio e por isso tanto a sua devoção privada como a
comunitária caracterizam-se pelo lugar que o silêncio geralmente ocupa neles. O
culto público quaker não tem uma liturgia previamente
preparada, nem há nele mesmo pregação preparada ou pregador indicado de
antemão. Os crentes sentam-se e ficam em silêncio, um silêncio que pode não ser
quebrado durante toda a hora do culto. Ou que pode ser quebrado por qualquer
membro da assembleia que faz uma oração em voz audível, outro que lê um texto
bíblico, outro que faz uma exortação. Está longe dos cultos formais do chamado
“Protestantismo histórico”, mas também das orações gritadas do evangelismo
popular e do doutrinarismo dos grupos fundamentalistas. O perigo de qualquer
pessoa psiquicamente desequilibrada tomar a palavra e perturbar é evitado com a
presença de “anciãos eleitos”, cuja principal tarefa é zelar pela ordem nos
cultos. O silêncio impera ali porque o quaker deseja
acima de tudo ouvir a Voz Interior, ter um encontro com Deus. Não vai ao culto
para cumprir um mandamento, nem para receber um sacramento, nem para se
mortificar com penitências. Nem mesmo para discutir doutrinas. Vai ali
especialmente para, na comunhão com os irmãos e irmãs, ouvir a Voz de Deus, que
lhe fala em qualquer lado, mas nas assembleias dos crentes o fortalece mais.
Nos cultos quakers reina uma serenidade contagiante
que se prolonga depois na vida da família e do trabalho. Até as crianças que
começam cedo a assistir ao culto quaker se habituam a
uma tranquilidade admirável. O culto proporciona, pode dizer-se, a cada crente,
um verdadeiro encontro consigo mesmo e com os outros. Esse encontro faz-se no
culto privado e no culto público. Pela oração, nascida no interior do crente,
ele realiza a comunhão com Cristo que enche de força e de sentido a sua vida.
Mesmo na vida ordinária do dia-a-dia o crente pode ter essa comunhão. Enquanto
trata de assuntos seculares - na fábrica, no escritório, na escola, no
consultório, na cozinha, semeando um campo; enquanto tem de dizer mil e uma
palavras de assuntos profanos, mantém esse diálogo ulterior contínuo. Por isso
alguns dizem que o Quakerismo é uma religião secular, ou antes uma religião
para o homem e para a mulher do mundo secular.
7. Espírito Ecuménico
O Quakerismo é naturalmente ecuménico, e
não apenas no sentido de aceitar como legítimas outras formas de se ser
cristão, mas mesmo no reconhecimento do valor de religiões não cristãs. Embora
o movimento quaker, por não se considerar Igreja, não
pertença ao Conselho Mundial de Igrejas, foi um quaker
inglês de grande projecção, Henri T. Hodgkin
(1877-1953), que deu grande cooperação para a formação dessa instituição
fundamental do ecumenismo. Hodgkin, escrevendo sobre
a evolução da sua visão teológica, deixou estas palavras: Por raciocínios demasiado numerosos e diversos para que os resuma,
cheguei a uma posição que se pode, no conjunto, definir assim: Creio que, o que é o melhor para uma pessoa, pode estar de tal maneira longe da minha própria
experiência e do meu modo de vida que eu não o aceitaria para mim. Reconheço
que uma evolução se fez em mim: eu acreditei antes que a minha via era a
melhor; reconheço agora que não há uma via que seja melhor e que Deus tem
necessidade de toda a sorte de pessoas e de modos de vida para Se manifestar no
mundo. A posição de Hodgkin é pessoal mas
teve a aprovação da Sociedade dos Amigos, que publicou esse extracto da sua
autobiografia no livro “A fé e a prática
do Cristianismo na Sociedade dos Amigos”. E interessante observar como nas
publicações do movimento quaker são citados com muita
admiração místicos das várias tradições, como Francisco de Assis, Teresa de
Ávila, João da Cruz, Wesley, etc.
Esta disponibilidade do Quakerismo para
o movimento em favor da boa convivência e unidade entre os cristãos tem de ver,
desde logo, com a sua convicção profunda de que em cada ser humano está
presente uma centelha divina. No que cada ser humano pensa e crê, diz o cristão
quaker, há sempre uma parte da Verdade e essa parte
descobre-se quando as pessoas falam e actuam em pureza. Também os ajuda a
poderem conviver facilmente com os demais cristãos o facto de não terem o que
nas igrejas chamam sacramentos. Infelizmente, a História do Cristianismo mostra
que os sacramentos, que o Catolicismo diz serem sete e o Protestantismo dois
(Baptismo e Ceia do Senhor), têm servido para dividir os cristãos. Porque uns
crêem, por exemplo, que o Baptismo deve ser ministrado só a adultos e outros
que devem ser também a crianças; uns afiançam que o Baptismo confere o Espírito
Santo ao baptizando e outros que é simples cerimónia; uns defendem que deve ser
por imersão na água e outros que é suficiente a aspersão. E, no que diz
respeito à Ceia do Senhor, acham uns que há transubstanciação, outros que
consubstanciação e outros ainda dizem ser simples memorial. Crêem uns na
Presença Real de Cristo neste sacramento, e outros afirmam que a Presença é
apenas simbólica. Daí, pois que, ao longo dos séculos e ainda no nosso tempo,
os sacramentos servem mais para dividir os cristãos do que para os unir.
Recusando a sua celebração material (pois dizem que o baptismo é do coração e a
Ceia é espiritual), os quakers evitam a discórdia
inútil e podem receber no seu seio qualquer outro cristão. Assim como podem
participar das celebrações de outras confissões. De qualquer forma, eles
lembram que Jesus não baptizou ninguém com água (ainda que tenha permitido aos
seus apóstolos que o fizessem), mas veio trazer um baptismo mais importante - o
do fogo do Espírito Santo, e esse é o que cada quaker
procura quando procura a união com o Espírito que o habita. A Ceia do Senhor,
por sua vez, aponta-nos para o Pão que desce dos céus, Jesus Cristo, e para o
Vinho novo que é o Seu sangue, derramado por nós. Uma família quaker pode levar o seu filhinho à reunião, ir à frente e
fazer uma oração dedicando a criança ao Senhor e nunca o baptizar. Faz o culto
doméstico e não sente a falta de um ministro para presidir ao sacramento da
Ceia, porque a sua Ceia é espiritual, recebendo o Pão e o Vinho que são o
próprio Cristo. Também nisto o Quakerismo adiantou-se em relação a muitas
igrejas. A Igreja Católica afirmava que iriam para o Limbo as crianças que
morressem sem ser baptizadas; o Protestantismo histórico achava indispensável o
baptismo das crianças, embora não para salvação.
Sublinhando o valor do sentido
espiritual do que a tradição teológica chama sacramentos, e desdramatizando a
importância das doutrinas, em favor da acção cristã, os quakers
tinham desde há muito de ser os mais convictos defensores de toda a actividade
com vista à unidade dos cristãos. Não admira que seja de um quaker
e já por 1737, a distinção que hoje está muito espalhada no movimento ecuménico
que diz assim: A unidade entre os
cristãos nunca consistiu nem nunca consistirá em uniformidade de pensamento e
de opinião, mas unicamente no amor cristão. (Th. Story). É claro que, como bom quaker,
Story não entendia “amor cristão” em termos
sentimentais, mas sobretudo corno serviço, ajuda e fraternidade.
O Quakerismo não busca o poder terrestre,
e, por isso, não tem como sonho uma super Igreja, união de todos para
impressionar e impor-se ao mundo. Não crê necessário que as Igrejas se unam sob
o princípio de que a “a união faz a força”. Para a Sociedade dos Amigos a força
que os cristãos devem buscar é de ordem espiritual e ética - e essa força vem
de Deus e mostra-se em vidas transformadas. Não tem, portanto, o Quakerismo uma
preocupação pelo número, pelas estatísticas. Pode ser o ramo mais pequeno da
Igreja Cristã, mas é indubitavelmente uma minoria transformadora, como o fermento na massa Mateus 13:33.
8. Duas dificuldades
Há dois aspectos da teologia quaker que o cristão protestante tem dificuldade em
aceitar. A primeira é a sua antropologia optimista. E a segunda o seu
pacifismo.
O optimismo antropológico vem-lhes da
convicção de que cada ser humano tem dentro de si a centelha divina, é
potencialmente bom e temos por isso de esperar coisas boas até do mais celerado
dos homens. Neste aspecto, o Quakerismo parece ao protestante que está em clara
oposição à revelação bíblica e mais próximo do semi-pelagianismo
da Igreja Católica do que do Protestantismo, especialmente da corrente
calvinista. De facto, Catolicismo e Protestantismo vêem o homem como um ser
decaído; mas enquanto o Catolicismo diz que, apesar da queda, o homem mantém
dons naturais, que o capacitam para acções admiráveis, o Protestantismo nega
essa capacidade. O Protestantismo apresenta textos bíblicos para falar da total
degradação do ser humano: Génesis 8:21; Salmo 14:3; Salmo 53:4; Romanos 3:10. A
reforçar estes e outros textos da Bíblia, o Protestantismo fala da experiência
humana em que, efectivamente, se observa facilmente uma grande multiplicação de
atitudes de maldade entre os humanos. A conjugação destes dois elementos
(Escritura e vida) faz do cristão protestante um convicto seguidor desta visão
pessimista do ser humano
A questão tem de ver com a interpretação
que se faz da queda do homem, segundo as narrativas de Génesis. A teologia
protestante viu desde o século XVI a queda como a ruína total do ser humano, da
qual só pode sair “pela graça”, convertendo-se a Cristo. Karl Barth, o teólogo
protestante de maior relevo ainda nos anos 1960 afirmava um forte “Nein!” em relação à teologia natural, ela sim, convencida
da existência no ser humano de alguma capacidade natural para fazer o bem e
buscar Deus. Poucos teólogos protestantes estavam nessa linha da teologia
natural.
É preciso pôr em questão o pessimismo
protestante, embora se reconheça a força dos textos bíblicos e a importância do
princípio da salvação apenas pela graça. No fundo, talvez seja possível
conciliar os dados bíblicos com uma visão do homem menos negativa. Pode
reconhecer-se que há, de facto, no ser humano, enormes potencialidades naturais
para o bem e no mais fundo da sua alma um fio de luz que, aprofundado pode
levar a Deus. Muitas religiões do mundo, não-cristãs, são tentativas honestas
de encontrar Deus e essas tentativas são não só legítimas como dignas de
respeito.
Falando em termos mais simples diremos
que é bem possível que tenham razão aqueles que crêem que atraímos sobre nós o
mal que tememos nos seja feito e que, pelo contrário, quando vemos bondade nos
outros, esses outros acabam por agir com bondade. Criamos uma atmosfera de
pensamento negativo ou positivo com o nosso próprio modo de pensar e
beneficiamos ou sofremos desse ambiente. Uma teologia optimista como a dos quakers criará amizade e bondade em volta de quem a cultiva
e uma teologia pessimista criará o inverso.
A outra dificuldade para o protestante
tradicional em relação ao Quakerismo é pacifismo absoluto que requerem dos seus
praticantes. O pacifismo é a atitude que rejeita o uso de violência seja qual
for o motivo. Não à guerra; não às armas, não ao serviço militar. É a maior
dificuldade que o protestante encontra para adesão ao Quakerismo, mas é aquilo
que mais elogios recebe, dada a sua acção na construção da paz, evidenciada em
especial na 1ª e na 2ª Guerras Mundiais. Num livro de apresentação do seu
movimento, o quaker Henry van Etten
escreve: “Desde há três séculos, em todos os países, os amigos (quakers) continuam persuadidos de
que as guerras só são possíveis porque os cristãos são infiéis ao ensino do
Senhor. Infiéis, não tanto em relação à própria guerra no momento em que ela
rebenta - então é demasiado tarde - mas porque o seu egoísmo em tempo de paz
prepara infalivelmente as conflagrações num dia ou noutro” (Le Quakerisme, p. 47). O que leva a ver um
obstáculo insuperável no pacifismo é a convicção de que a violência faz parte
fatal da história humana e sem ela seria impossível controlar o mal. Como,
pergunta o homem vulgar, poderia uma sociedade viver sem polícia? E de que
serviria uma polícia que não tivesse armas? Como continuaria Portugal a ser um
Estado independente sem um exército? Uma guerra é um grande mal, mas é
legítimo, senão mesmo um dever, que peguemos em armas para defender o país, se
este for atacado. E as ditaduras? Como terminariam elas se não houvesse quem
estivesse pronto a lutar, eventualmente de armas na mão, para as derrubar? E
que fazer se um bandido ameaça a vida de alguém que temos o dever de proteger?
Mas a história não dará razão aos pacifistas? Não é verdade que, se os cristãos
da Alemanha da década de 1930 tivessem sido fiéis a um ideário pacifista nunca
teriam apoiado um louco violento como Adolf Hitler -
que se tornou chanceler por voto maioritário?! Não é verdade que a discussão
pacífica e firme dos problemas teriam evitado a morte de milhões? Já se tem
lamentado que os judeus não tenham pegado em armas para evitar o holocausto -
mas além de se dever antes lamentar a passividade dos cristãos, devia também
lembrar-se que, efectivamente, teria sido muito mais eficaz a existência entre
os judeus de um movimento pacifista, em que milhares mesmo estivessem prontos a
perder a vida, evitando a morte de milhões. O pacifismo não é passividade, mas
é luta pela palavra e pela resistência cívica. A luta de Ghandi
pela independência da Índia foi um exemplo concreto da eficácia do pacifismo.
Só foi lamentável que não tivesse conseguido deixar discípulos firmes na sua
doutrina e método que continuassem a luta pacifista depois do seu assassinato.
A morte de Ghandi não prova a derrota do método
pacifista, prova o resultado do abandono do método. Com maior razão se podia
dizer o mesmo da morte de Jesus. A sua crucifixão não é a sua derrota nem a
derrota da sua “resistência pacífica”, porque depois da sua morte (e
ressurreição) o movimento de criação da comunidade de irmãos e irmãs
manteve-se. O que a experiência da História prova é que a violência gera
violência e os problemas ficam sempre por resolver enquanto ela permanecer. Os
melhores objectivos, se buscados por meios violentos, acabam por levar ao fracasso.
A Revolução Francesa quis acabar com a opressão e acabou com as execuções do
“Reinado do Terror”. A Revolução comunista de 1917 teve milhões de vítimas
inocentes do tempo de Estaline. A violência e injustiças sobre os povos do
Terceiro Mundo descabou na perturbação actual e o
terrorismo institucionalizado trouxe a Al-Qaeda, que
lança fogo no planeta. Os quakers têm razão: é
preciso começar imediatamente uma educação pacifista. Realista mas decidida.
Figueira da Foz – Portugal – Fevereiro
de 2006
(a) Solitude é uma antiga palavra de origem latina. É diferente de solidão, pois
solidão é o isolamento indesejado e solitude é o isolamento buscado e desejado.
Convidamos o prezado visitante a ler
também o novo artigo do Pastor Cardoso sobre o mesmo assunto, com o título de Movimento de Deus
em nós. Poderá também enviar os seus comentários.
Estudos
bíblicos sem fronteiras teológicas