Saramago e a Bíblia (CC)

(Deverá “clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)

 

 

Acabo de ler o livro “Caim”, o último publicado pelo escritor José Saramago, Nobel da literatura, que qualquer pessoa do nosso mundo lusófono poderá encontrar nas livrarias, na sua versão original em português e pessoas de outras línguas possivelmente as suas traduções.

Também vi o frente-a-frente de José Saramago com o Frade franciscano Carreira das Neves que é também Padre e Professor de teologia bíblica na Universidade Católica em Portugal. Quem não assistiu a este programa, ainda o poderá ver em http://www.portalateu.com/2009/10/24/jose-saramago-vs-pde-carreira-das-neves/

Quero dizer em primeiro lugar, que sou crente em Cristo sem estar ligado a nenhuma igreja, e me considero um curioso e um entusiasta pela teologia com alguns conhecimentos bíblicos, que se sente enganado, não pelo Saramago, mas pela propaganda que o catolicismo e também os evangélicos fizeram a este livro. Tanto falaram neste último livro de José Saramago, que eu, que não sou leitor habitual do Saramago, também resolvi comprar o livro julgando que se tratava de teologia. Afinal trata-se dum livro de ficção, fruto da fértil imaginação do autor, mas que li com interesse.

Penso que José Saramago, bem pode agradecer ao Catolicismo a propaganda que fez ao seu livro, assim como a Igreja Católica, também poderia agradecer a Saramago, por este ter feito o que os seus pregadores geralmente não conseguem, que foi despertar o interesse, ou pelo menos a curiosidade pela Bíblia, que tem passagens que poucos conhecem.

É verdade que nos nossos dias, tanto católicos, como protestantes e evangélicos lêem a Bíblia, mas o problema é que são leituras dirigidas pelas suas igrejas. Tanto os textos do leccionário litúrgico, como os planos de leitura da Bíblia, nunca mencionam as passagens mais polémicas e escandalosas do Velho Testamento.

Nada percebo de literatura, para poder comentar este novo livro de Saramago, pelo que estes meus comentários devem ser considerados num contexto de teologia.

 

José Saramago não escreve propriamente sobre teologia, mas aborda temas religiosos ou ligados à religião, e afirma que não é teólogo, mas não posso deixar de o considerar como tal, pois medita em Deus e conhece a Bíblia, embora tenha optado pelo ateísmo que é também uma opção teológica, assim como o agnosticismo. Embora nas estatísticas, a maioria dos portugueses se identifiquem como católicos, penso que o fazem por questão de tradição, pois nas suas convicções, a grande maioria dos portugueses são agnósticos de tradição católica, dispostos a defender o catolicismo, mais por questão de tradição do que por convicções teológicas.

Se, conforme afirmam alguns teólogos, a Bíblia é a carta de Deus para o ser humano, penso que se referem ao homem vulgar e não ao grupinho de intelectuais que, isolados do mundo real, se deliciavam com a sua própria espiritualidade, enquanto os outros trabalhavam para eles. No passado, esses trabalhadores, até eram os escravos da Igreja, que o Marquês de Pombal libertou por Decreto de 1856 (a). Aliás no Velho Testamento estava prevista a escravatura (b).

 

Há um aspecto em que me identifico com Saramago, que é a rejeição do deus de Moisés, que considero o oposto ao Deus Pai, que Jesus nos revelou.

Sobre o assunto, escrevi em Setembro o meu artigo Que fazer com o Velho Testamento? (CC) que publiquei nesta minha página da internet no início de Outubro e que vos convido a ler.

 

Embora não estando em sintonia com pensamento de Saramago, valorizo a sua atitude de ler e interpretar livremente a Bíblia, sem a tutela de nenhuma igreja ou fidelidade a alguma linha doutrinária, atitude cada vez mais rara nos nossos dias. A posição de Saramago, da interpretação literal da Bíblia, ainda hoje é defendida por muitos teólogos católicos e evangélicos. Embora eu não me considere um literalista, concordo que a alegorese tem servido nos últimos tempos, para encobrir as passagens mais escandalosas da Bíblia.

Claro que há passagens simbólicas na Bíblia, mas em princípio as palavras devem ser interpretadas no seu sentido literal, enquanto nada encontrarmos nos textos que nos indique estarmos perante linguagem alegórica. Neste pormenor apoio a posição teológica de Saramago. Não podemos esquecer de que os judeus, que foram os destinatários do Velho Testamento, interpretaram literalmente as passagens em que o seu deus mandava aplicar a pena de morte com manifesto desprezo pela vida humana, e através dos séculos muitas foram as vítimas dessa interpretação, pois morreram literalmente, de morte violenta. Não foi morte fingida ou morte simbólica.

Havendo duas interpretações, uma dos destinatários que foram também contemporâneos do escritor bíblico e outra interpretação que aparece dois ou três milénios mais tarde, penso que a interpretação de quem está mais perto no tempo, deverá merecer maior credibilidade.

 

Mas há aspectos em que discordo com o que vi nesse diálogo entre Saramago e Carreira das Neves.

 

1) Sem de maneira alguma desvalorizar o ilustre Professor de Teologia, penso que seria importante terem convidado algum Rabi de Sinagoga, pois já vi que no livro sobre Caim, todas as passagens mencionadas são do Velho Testamento. Penso que Saramago poderia ter mencionado o livro/capítulo/versículos, para que os leitores pouco familiarizados com a Bíblia pudessem confirmar as descrições do seu livro que por vezes não são bem iguais aos textos bíblicos.

 

2) Este frente a frente teria muito mais interesse se estivessem representadas outras orientações teológicas até mesmo dentro do catolicismo.

Saramago é um livre-pensador, liberto da tutela das igrejas, que considero um ateu sincero e conhecedor da Bíblia. O Frade Carreira das Neves pareceu-me um teólogo liberal, ou pelo menos não é fundamentalista. Mas há católicos e evangélicos que defendem a interpretação literal da Bíblia, como Saramago interpreta certas passagens, nomeadamente em Génesis.

 

3) Vi que ambos falavam da Bíblia como se fosse um livro. Nem sequer fizeram a diferença entre o Velho e o Novo Testamento. Mas Saramago referiu que a Bíblia demorou mil anos a ser escrita, ou por outras palavras, é uma selecção de textos escritos por vários autores ao longo de mil anos. Será lógico considerar todos igualmente inspirados? Ou deveremos rejeitar todos porque algum desses livros (antigos rolos de pergaminho) não estão em sintonia com os outros? Eu pessoalmente, vejo uma grande diferença entre o deus veterotestamentário e o Deus Pai que Jesus nos apresentou, revogando muita coisa do Velho Testamento. Penso que não é possível seguir a Cristo e a Moisés. Não podemos, ao mesmo tempo seguir o exemplo de Jesus, tratando dos leprosos Mateus 8:2/3 e escorraçá-los à pedrada cumprindo a Lei de Moisés Números 5:2.   

 

4) O principal problema que se levantou, entre a interpretação literal, fundamentalista ou a interpretação alegórica, é uma discussão que vem desde o século II entre a interpretação alegórica da Escola de Alexandria, e a Escola de Antioquia que valorizava a interpretação literal.

Pessoalmente, penso que Saramago tem razão em valorizar interpretação literal enquanto não houver claros indícios, nos próprios textos, de estarmos perante uma alegoria. Também penso que a intenção do escritor de Génesis é que a história da criação, incluindo a existência de Adão e Eva, bem como Caim e Abel, fosse interpretada literalmente, como ainda hoje é a posição de alguns teólogos fundamentalistas.

Nomeadamente, nas passagens históricas e principalmente nas leis de Moisés, não consigo imaginar a apresentação de leis como alegorias. Não vou repetir o que já escrevi no artigo que já mencionei Que fazer com o Velho Testamento? (CC)

 

5) Quanto à afirmação de que A Bíblia é um manual de maus costumes.

Sendo a Bíblia um conjunto de 66 livros canónicos, aceites praticamente por todo o cristianismo (embora não seja essa a minha posição), não contando com os deuterocanónicos, tenho muita dificuldade em aceitar ou rejeitar esta afirmação de Saramago. Mas penso que há algum simbolismo nesta sua afirmação, pois nem tudo que é bíblico é bom, assim como nem tudo é mau.

Na verdade nem tudo que está no Velho Testamento teve a aprovação de Cristo. Em Mateus 5:38/44 Jesus corrige várias leis do Velho Testamento. Afinal em que ficamos? Qual a afirmação que aceitamos e qual a que rejeitamos? Velho Testamento ou Novo Testamento?

Eu também tenho dúvidas em aceitar o Velho Testamento como texto inspirado por Deus e penso que Saramago tem razão, pois no VT encontramos mandamentos inaceitáveis em face da mensagem de Jesus. Pode dar uma olhada em Algumas Leis do Velho Testamento. Repare que são leis de Moisés, em que será pouco credível encontrarmos linguagem alegórica.

 

6) Quanto à sugestão de Saramago, para que a Declaração Universal dos Direitos Humanos inclua o direito à dissidência e o direito à heresia.

Não sei bem qual a semântica destas palavras quando Saramago as utiliza. Foi pena ele não ter desenvolvido o seu pensamento, mas se dissidência é discordância de opinião, e se heresia deriva de hairesis no grego que significa escolher, ou tomar uma opção política, teológica ou filosófica etc, então só é possível a vulgar semântica que estas palavras adquiriram num contexto de teologia, como alguma coisa que merece ser punida com a pena de morte, onde não houver liberdade de pensamento nem liberdade de religião. Isso realmente já aconteceu no passado, no tempo da Inquisição e também em Israel antes da colonização romana lhes ter levado a civilização e imposto a liberdade de religião. Será que ainda hoje há países fundamentalistas cristãos, islâmicos ou outros, onde se fala em heresia com tal significado? Se assim é, então apoio esta sugestão de Saramago.

 

7) Para finalizar, penso que há um certo fundamento para o paralelo de ideias que o moderador Mário Crespo estabeleceu entre a atitude de Saramago ao referir-se aos simbolismos utilizados para encobrir as passagens mais escandalosas do Velho Testamento e a atitude de Lutero que desmontou toda a alegorese medieval e devolveu a Bíblia ao povo em linguagem dos nossos dias.

 

 

Camilo – Marinha Grande, Portugal

Novembro de 2009.

 

(a) http://oficinadahistoriad.blogspot.com/2008/12/abolio-da-escravatura-em-portugal.html

(b) A Bíblia prevê que um escravo ou escrava possa ser adquirido pelos seguintes meios: Pela guerra Números 31:9. Por compra Ezequiel 27:13. Por nascimento de outros escravos Génesis 17:12. Como pagamento de dívidas 2º Reis 4:1.

 

 

 

Estudos bíblicos sem fronteiras teológicas