Calvino, Reformador impopular (MC)
(Deverá
“clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)
João Calvino, o teólogo que personifica a Reforma do
cantão suíço de Genebra, nasceu no dia 10 de Julho de 1509, em Noyon, França. No próximo ano, por todo o mundo, Igrejas e
organizações cristãs têm um vasto programa para assinalar os 500 anos do
nascimento do Reformador, cujo pensamento teológico, eclesiológico e ético, é
globalmente designado por “Calvinismo”. O Calvinismo teve, ainda em vida de
Calvino, um sucesso enorme e passou rapidamente da Suíça para a França, Holanda
e Escócia. O seu crescimento, nos séculos seguintes, só foi contrariado, dentro
do Protestantismo, pela acção de João Wesley (1703-1791), fundador do Metodismo,
e já próximo a nós pelo Pentecostalismo, formas de Protestantismo de orientação
arminianista. Mas as Igrejas presbiterianas ou
reformadas, que devem a sua organização à reflexão deste teólogo, continuam a
considerar-se no essencial, calvinistas.
O sucesso do Calvinismo veio sempre acompanhado por
muita crítica, feita não só ao pensamento do teólogo como ao seu carácter. No
século passado, o ataque à figura de Calvino foi particularmente vivo num livro
escrito pelo romancista austríaco Stéfan Zweig, com o título Castélio
Contra Calvino (1930). Zweig era judeu e viveu,
com razão, amargurado contra o fanatismo e intolerância do nazismo, que o
perseguiu e obrigou a refugiar-se no Brasil, onde acabou por se suicidar com
sua mulher. Na sua revolta, elegera Calvino como figura extrema de intolerância
e fanatismo, o que se compreende, mas, mas neste tempo de comemoração do 500º
aniversário do nascimento do Reformador impõe-se revisitar esta figura e
reconhecer que há em Calvino aspectos dignos de admiração. O que é necessário é
começar por olhar para Calvino no contexto do seu século, o século XVI, quando
dominava na cultura ocidental um dualismo absoluto entre vida terrena e vida
celeste e entre corpo e alma. O homem era então visto pela quase totalidade das
pessoas como um ser que passava pela terra apenas acidentalmente, destinando-se
ao Céu ou ao Inferno. A vida terrena era uma passagem de preparação e o corpo
simples prisão da alma. Era, na verdade, o pensamento pagão grego que dominava
o pensamento ocidental, mesmo que se apresentasse com linguagem cristã. Este
dualismo opõe-se diametralmente ao pensamento dominante no ocidente desde o
século XIX, em que o ser humano é visto como um ser apenas terrestre, simples
“bicho da terra”, acabando tudo com a morte. Com aquela antropologia do século
XVI, era natural que se aceitasse a tortura e a pena de morte como práticas
correctas, já que com elas, acreditava-se, não se tocava no que era realmente
importante na pessoa, a alma. Havia mesmo a possibilidade, pensava-se
geralmente, de um homem que levou uma vida terrestre condenável, encontrar na
morte pela fogueira a purificação dos seus pecados e alcançar assim a
bem-aventurança eterna. Obviamente, o pensamento dominante dos nossos dias nada
tem a ver com este dualismo e por isso os homens de hoje (excepto os crentes,
claro) não podem compreender a suma importância que a religião tinha no século
de Calvino. A religião hoje, para quem vê no homem um simples animal racional
destinado à destruição final, é uma questão de gosto privado, no máximo tão
respeitável como ser adepto do clube de futebol A ou B. Como o “homem moderno”
diz que não há Deus, considera totalmente idiota os adeptos da religião A
dividirem-se contra os adeptos da religião B, porque “gostos não se discutem”.
O pensamento cristão, que não concorda com o
pensamento dominante do século XVI nem com o dominante neste século XXI, afirma
que o homem é, de facto, corpo, alma e espírito, mas vê o homem como uma
unidade inseparável, e espera a ressurreição do corpo e viver eternamente.
Nesta perspectiva cristã, nem todas as doutrinas servem, nem são indiferentes
as palavras que dissermos sobre Deus – mas a figura modelo é Jesus Cristo que
não aprova a intolerância nem a violência, mas proclama bem-aventurados os que
fazem a paz. Obviamente, um crente cristão está em desacordo com o pensamento
comum do século XVI e com o pensamento comum deste século XXI.
Do seu tempo e da sua sociedade
Calvino é um homem do século XVI. Nos seus livros
(principalmente na Instituição da Igreja Cristã, mas também no Verdadeiro
Modo de Reformar a Igreja, nos catecismos, nos comentários da Bíblia, nos
seus sermões), há fundamentalmente reflexos do ensino mais rico da Sagrada
Escritura, mas temos de contar também com algumas manifestações do pensamento
dominante do seu tempo. O infeliz apoio que Calvino deu à condenação à morte do
médico e teólogo espanhol Miguel Servet, que
rejeitava a doutrina da Trindade, é resultado dessa comunhão de Calvino com o
pensamento do seu tempo. Tragédia que nos deve pôr de alerta
em relação ao modo como nos deixamos ou não influenciar pelo pensamento
do nosso tempo. Naturalmente, um cristão, incluindo o cristão teólogo, deve ser
um homem aberto ao seu século, deve viver em comunhão com o seu tempo, mas sabendo
que nem tudo o que é moderno merece o nosso apoio.
Mas há outra questão que é indispensável ter em conta
quando estudamos a acção e o pensamento de Calvino. É o facto de ser em Genebra
que o Reformador actuou. Genebra que, quando ele vai servi-la como pastor
(1536-1538 e 1541 até à morte, em 1564), já está, em teoria pelo menos,
totalmente convertida à Reforma. O Catolicismo estava completamente afastado e
a cidade-estado afirmava-se uma sociedade cristã reformada. Calvino tem, pois,
pela frente uma situação desafiadora que a Igreja em termos gerais não
encontrava desde os tempos primitivos. Devemos lembrar que o Cristianismo
primitivo emergiu com uma grande fragilidade, sendo extremamente minoritário
dentro do Império Romano. Não havia, naturalmente, as mínimas condições de a
Igreja do primeiro e segundo século estabelecer para a sociedade civil
estruturas que dessem corpo aos ideais proclamados pelo Evangelho. Pelo
contrário, o que aconteceu foi, progressivamente, a Igreja deixar-se
influenciar pelo Estado (constantinização da Igreja),
o que implicou a adopção de um governo hierárquico, e a separação rígida do
clero e do laicado. Calvino é, entre os Reformadores, o único que encontrou,
com textos bíblicos, uma estrutura eclesiástica alternativa, assegurando um
papel de extrema importância ao presbítero e envolvendo pela primeira vez os
leigos no governo eclesiástico. Ainda que o próprio Calvino não fosse de
orientação democrática (não havia democracia nesses dias), ele é, pelo tipo de
governo que quis para a Igreja, um dos pais da democracia moderna. Mas é
preciso dizer: o teólogo não inventou nada: apenas procurou nas Escrituras o
sistema que achava ser da vontade de Deus. Depois, com as mesmas Escrituras nas
mãos, Calvino procurou as regras éticas que deviam orientar uma sociedade que
se afirmava cristã. Os estudos bíblicos e teológicos que foram feitos nos
séculos que nos separam de Calvino permitiram perceber que o seu esforço de
criar uma espécie de teocracia cristã estava errado: o Evangelho não pretende
dar receitas morais, mas pretende chamar os homens ao arrependimento e à
conversão ao Reino de Deus Mateus 6:33. A
teocracia de Israel, que o Antigo Testamento em muitos lugares defende,
pertence a uma fase da revelação divina, como a Lei é o aio que nos leva a
Cristo – mas com Jesus Cristo é inaugurado um tempo novo em que, até à Segunda
Vinda, importa que se dê a César o que é de César e a Deus o que é de Deus Mateus 22:21. A
Igreja deve ter uma voz profética e denunciar o mal, incluindo os erros do
Estado, mas não pode ter a pretensão de querer dominar o poder civil.
Deve acrescentar-se, no entanto, que, se o desejo de Calvino
de criar condições para que os valores cristãos determinassem a vida de
Genebra, falhou em muitos aspectos, ele teve também muitos resultados
positivos, pois escritores que viajaram para a Genebra dos tempos imediatos à
acção de Calvino deixaram relatos de grande apreço pela vida cristã que ali se
observava. Os frutos do ensino do Reformador perduraram pelos séculos seguintes
e mesmo há poucos anos ainda Genebra era uma sociedade exemplar em civismo, com
as suas Igrejas calvinistas dando testemunhos admiráveis e não foi por acaso
que os dirigentes do movimento ecuménico escolheram, em 1948, esta cidade para
nele instalarem a sede do Conselho Mundial de Igrejas, e os políticos
escolheram-na para diversos departamentos da Organização das Nações Unidas (ONU),
assim como é sede da Cruz Vermelha Internacional e de muitas outras
organizações filantrópicas. Hoje, nestes primeiros anos do século XXI, é ainda
um cantão pacífico – mas a perturbação do mundo actual também atinge a
“República de Genebra” que se orgulha de ostentar um Muro da Reforma, com as
estátuas de quatro grandes reformadores calvinistas: Guilherme Farel, Teodoro de Beza, João Knox
e, naturalmente, João Calvino.
Vivendo
nós numa época de grande confusão religiosa e ética, em que o dinheiro domina
os espíritos até mesmo dentro de “Igrejas”, que exploram os povos, temos de
reconhecer que Calvino é uma figura da história que merece a nossa admiração
sob muitos aspectos. A interpretação que fez do Cristianismo é por vezes, sem
dúvida nenhuma, demasiado austera, mas é deste teólogo que nos ficou este
princípio fundamental: “Soli Deo Gloria”, (Só a Deus seja dada glória!)
Manuel Pedro Cardoso
Figueira da Foz, Portugal
Outubro
de 2008
Estudos
bíblicos sem fronteiras teológicas